Que jogo perturbador (e necessário)! Atravessar a jornada de Senua é como andar descalço sobre cacos de vidro dentro da própria mente. Em tempos em que o discurso sobre saúde mental é, felizmente, cada vez mais presente, poucos jogos se atrevem a transformar o sofrimento psíquico em elemento estruturante, e não apenas em pano de fundo. Hellblade: Senua’s Sacrifice, o triple A da Ninja Theory, não só se atreve, como mergulha de corpo inteiro na insanidade para emergir com um dos enredos mais visceralmente humanos da década.
A construção da narrativa não depende de personagens secundários para explicar a protagonista, tampouco utiliza clichês visuais para representar o transtorno mental. A mente é o mapa, o delírio é a estrada, e o controle está, ironicamente, nas suas mãos. “A dor precisa de um lugar para morar”, disse Carl Jung. Hellblade oferece um palácio inteiro para ela.
Entre o delírio e a beleza crua: a imersão como experiência liminar
Apesar de não ser um lançamento recente, eu não podia deixar de falar sobre esse jogo que tanto mexeu comigo (um dia conto o porquê). Hellblade continua sendo um tapa estético, narrativo e filosófico na cara de quem ainda acha que videogame é entretenimento descompromissado. Aqui, não há espaço para o unívoco. O que se vê e se ouve está sempre sob o risco da interpretação distorcida, da alucinação sutil, do delírio sensorial. A experiência de jogo, pensada em parceria com neurocientistas e pessoas com histórico de transtornos mentais, cria uma imersão que não quer ser apenas “realista”, mas desconfortável, estranha, quase sacramental.
Como um poema da Sylvia Plath renderizado em Unreal Engine, Hellblade não permite distração. Cada detalhe visual, cada sussurro binaural, cada textura sonora parece querer arrancar a pele do jogador para que este se descubra por dentro. A jogabilidade exige escuta, não apenas a dos ouvidos, mas a escuta interna, aquela que Freud dizia ser a mais dolorosa.
Senua, a anti-heroína, arquétipo e espelho
Senua é uma guerreira celta com traços de mitologia, sim, mas é também a figura brutalmente humana de quem tenta manter a sanidade debaixo de um mundo em ruínas internas e externas. O que em outros jogos seria fraqueza ou obstáculo, aqui se torna força narrativa. A voz interna – ou melhor, as vozes internas – não são apenas efeitos sonoros: elas são presenças, personagens, oráculos, armadilhas. Constroem tensão, revelam nuances, sabotam o conforto do jogador. O jogo não te conduz: ele te interroga o tempo todo.
Senua não é uma personagem que desejamos controlar, mas com quem desejamos fazer as pazes (outra coisa que me tocou bastante). Ela está para o mundo dos games assim como Ofélia está para a literatura: perturbadora, bela, trágica e absolutamente real na sua dilaceração interna. Sua luta não é heroica porque vence monstros, mas porque é lutada sem aplauso, com dores para além da carne.
A estética do desconforto no som, na imagem e na corporeidade
Graficamente impecável, Hellblade beira o fotorealismo sem sacrificar a poesia visual. A atuação de Melina Juergens, premiada e absolutamente crível, confere a Senua uma humanidade inquietante. Há dor em cada movimento, cada respiração, cada olhar perdido no vazio. A trilha sonora e os efeitos binaurais elevam a experiência a um nível quase ritualístico, onde cada passo em direção ao desconhecido é também um passo para dentro de si. Jogar Hellblade é como calar o mundo externo para ouvir o barulho das próprias rachaduras. Uma experiência de autodestruição contemplativa, por assim dizer.
Como diria David Lynch, “som é metade da imagem”. Hellblade parece ter entendido isso como um mandamento sagrado. O jogo exige fones de ouvido, mas o que ele quer mesmo é que você tire os tampões emocionais. A sinestesia é desconcertante.

Psicose sem clichê
Do ponto de vista da psicologia, o jogo oferece um retrato metafórico, mas incrivelmente respeitoso, das experiências de quem convive com transtornos psicóticos. Alucinações auditivas, delírios paranoides, dissociação da realidade: tudo é apresentado com uma sobriedade rara no universo pop. Não há glamour, nem vitimização. A psicose aqui não é gênese de superpoderes nem mera fragilidade trágica: é um dado da existência.
Como no texto clássico de R.D. Laing, a loucura não é um erro, mas uma resposta humana a um mundo insano. A equipe por trás do jogo consultou psiquiatras, psicólogos e pessoas diagnosticadas com esquizofrenia para moldar a experiência de forma ética e simbólica. Isso não é apenas relevante. É revolucionário.
E talvez seja essa a mais incômoda das belezas de Hellblade: a capacidade de nos colocar, ainda que por algumas horas, num lugar que muitos ocupam dolorosamente todos os dias. E saímos de lá com a alma arranhada, mas talvez mais humanos. Jogar Hellblade é, também, um convite à empatia.
A esquizofrenia, tantas vezes mal compreendida, é uma condição que desorganiza a percepção, mas não anula a humanidade de quem a vivencia. Não se trata de loucos perigosos nem de gênios incompreendidos. Trata-se de pessoas. De histórias. De famílias que lutam silenciosamente, todos os dias, contra o preconceito e a negligência.
Um retrato impressionante dessa realidade pode ser encontrado no livro “Vidas Divididas” (Divided Minds), escrito por Pamela Spiro Wagner e Carolyn S. Spiro. Nele, duas irmãs gêmeas (uma, paciente psiquiátrica diagnosticada com esquizofrenia, a outra, psiquiatra) narram, em vozes alternadas, a complexidade de viver e conviver com o transtorno. A obra é brutal e bela, assim como Hellblade, e nos lembra que a loucura é menos sobre distúrbio e mais sobre sobrevivência e amor.
Talvez, após sentir na pele as ranhuras da mente de Senua, você decida olhar diferente para quem vive nesse limiar o tempo inteiro. E ajudar. Porque empatia também é a melhor forma de resistência.

Para quem é este jogo, afinal?
Hellblade: Senua’s Sacrifice é para quem quer mais que derrotar chefões e coletar itens. É para quem aceita sair do jogo menos seguro do que entrou. É para quem entende que o medo e a coragem muitas vezes partilham o mesmo quarto escuro. Uma obra de arte interativa que incomoda, provoca e emociona. Um lembrete de que todos travamos batalhas silenciosas e que, por trás dos olhos mais firmes, pode haver tempestades inimagináveis.
Se você ainda não atravessou o inferno pessoal de Senua, talvez esteja perdendo a oportunidade de encarar seus próprios. O que nos torna humanos não é a lucidez plena, mas a forma como dançamos nas ameias da loucura.
E você? O que acha que nos define: a razão ou as nossas rupturas com ela? E, mais que isso: o que você tem feito por quem vive preso nesse abismo todos os dias? Te convido a jogar e te encorajo a refletir.
Impecável, como sempre.