O Vento que Arrasa: o Road Book Repleto de Poeira, Silêncio e Fé que Você Precisa Ler

Selva Almada não escreve: ela perfura. Seu romance de estreia, O Vento que Arrasa, não entrega trama, e sim atmosfera. Uma Argentina abrasada pelo sol, engasgada de poeira e povoada por figuras que parecem saídas de uma pareidolia literária, como se tivessem sido vislumbradas numa nuvem densa e fossem, a cada página, tomando contorno, sem nunca perder a aura de espectros. Almada nos dá um livro que está a meio caminho entre a novela filosófica e a fábula realista. Uma espécie de road movie estagnado, um Onde os Fracos Não Têm Vez sem tiros nem xerifes, mas com as mesmas inquietações humanas brotando em cada rachadura da paisagem.

O enredo que não precisa de clímax

O Vento que Arrasa é um romance curto, quase minimalista, que transita com elegância entre o existencialismo de um Camus e o lirismo rúngico de Juan Rulfo. Seu enredo é sutil: um pastor evangélico, o Reverendo Pearson, e sua filha adolescente, Leni, cruzam uma região remota do interior argentino com o carro enguiçado. O acaso (ou o destino, se você preferir) os leva até uma oficina improvisada onde vivem Gringo Brauer, um mecânico sisudo, e Tapioca, seu ajudante jovem e introspectivo. Nada de grandes reviravoltas, perseguições ou revelasções escandalosas. E, ainda assim, tudo se transforma, pois o livro não trata de acontecimentos, mas de encontros. E encontros, como bem sabem os roteiristas de The Leftovers, são a matéria-prima da mudança.

Personagens que parecem existir de verdade

A força do livro está no não dito. Na maneira como Selva Almada transforma silêncios em artilharia. Cada diálogo só existe para ressaltar o que fica entre as falas. As tensões não explodem: assoviam, escorrem pelas frestas, cortam como navalha cega. Poucos escritores contemporâneos conseguem essa proeza de dizer tanto com tão pouco barulho. Talvez porque Almada não esteja interessada em contar uma história, mas em nos fazer ouvi-la com o ouvido encostado no peito de personagens que sangram quietos.

O Reverendo, esse profeta de província, é um fanático que você quer tanto detestar quanto entender. Um homem que acredita tanto na redenção que se esquece de se redimir. Gringo, o mecânico, encarna o homem da terra, do suor, do café sem adoçante. E Tapioca… ah, o nome pode soar cômico, mas é talvez o personagem mais pungente do romance. Um menino-homem, ou um homem ainda menino, que observa tudo com a docilidade dos que carregam cicatrizes internas.

Leni, por sua vez, é a materialização do desconforto adolescente. Presa entre um pai que a venera como extensão de sua missão divina e um mundo onde ela ainda não sabe como habitar. Sua presença não é apenas a da jovem que cresce, mas da dúvida que se impõe ao dogma. Em sua fragilidade e têmpera, Leni seria perfeitamente escalada como uma das heroínas em processo de amadurecimento das séries indie que tentam equilibrar Euphoria com True Detective.

O simbolismo do vento no romance

O título “O Vento que Arrasa” não é apenas poético: é central. O vento, na narrativa de Almada, é mais que um fenômeno natural. Ele encarna o destino, a mudança, o que não pode ser evitado. Assim como uma tempestade pode alterar a paisagem, os encontros e confrontos entre os personagens transformam suas vidas de maneira irreversível. Em termos simbólicos, o vento é a força que desestabiliza, que rompe com a estagnação e expõe o que estava escondido sob a calmaria aparente. E como disse um crítico, “o vento, onipresente na narrativa, simboliza a força implacável da natureza e o destino ineludível dos personagens”.

Um vendaval sutil na literatura latino-americana

À medida que os dias passam e o carro não se conserta, o que se ergue não é um clímax, mas uma revelação: ninguém está ali por acaso. Mesmo que esteja. O Vento que Arrasa, como o título sugere, é um vendaval sutil: daqueles que não derrubam casas, mas deslocam o eixo da alma. Um livro sobre fé, mas não a fé de templos e dogmas. A fé torta, arranhada, que brota quando você dá de cara com o vazio e resolve dançar com ele.

Por que ler O Vento que Arrasa

Porque poucas obras conseguem ser tão breves e tão intensas. Porque Almada faz da linguagem um campo de tensão emocional. Porque os personagens não cabem em arquétipos e ainda assim ecoam como arquétipos humanos universais. Porque há algo de cinematográfico, de filme indie argentino, que reverbera Paris, Texas e No Coração da Escuridão. E porque, se você tem o costume de sublinhar frases, vai precisar de dois marcadores.

Como esta frase aqui:

“Não queria saber de pensamentos elevados. Religião era coisa de mulher, de fracote. O bem e o mal eram coisa de todos os dias, deste mundo, coisas concretas com as quais se lidava de corpo presente.”

Gringo Brauer, com sua visão terrena e despojada, sintetiza uma das grandes dicotomias do romance: entre o sagrado e o real, entre o idealismo e o concreto.

Uma leitura essencial

Terminar Almada é como acordar de um sonho abafado: você não sabe bem o que viveu, mas sente que algo em você se alterou. Talvez seja essa a grande arte da escritora: provocar pequenas revoluções sem levantar a voz. Porque não é preciso gritar quando se sabe exatamente onde tocar.

Se Mad Max tivesse sido adaptado por Terrence Malick e ambientado no pátio dos fundos de um culto evangélico sul-americano, talvez tivéssemos algo como O Vento que Arrasa. Já leu algum livro que te desestabilizou sem nem saber como? Me conta nos comentários qual foi o seu “vento que arrasou”.

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