Noites Brancas e a beleza da dor e da feiúra necessárias

É impressionante como um conto de 1848, curto, aparentemente singelo, escrito por um jovem Fiodor Dostoiévski de apenas 27 anos, consegue ainda hoje oferecer um espelho mais nítido da alma humana do que muitas obras supostamente revolucionárias produzidas aos borbotões pelo cinema e pela televisão atuais. Noites Brancas, essa pequena joia da literatura russa, faz aquilo que só a boa literatura consegue: perturba (já perceberam que gosto disso em literatura, né?). E não por seu enredo em si, mas pela intensidade com que apresenta a fratura da existência.

O amor, o sonho e o tapa da realidade

Ambientado nas longas noites do verão petersburguense, o conto acompanha um narrador solitário, um “sonhador” crônico, cuja existência se resume a fantasias que o afastam do real. Durante quatro noites e uma manhã, ele conhece e se apaixona por Nástenka, uma jovem igualmente atravessada por ausências e promessas. Ambos compartilham seus anseios, suas memórias e suas dores. Parece que algo poderoso nasce dali, mas como em toda boa literatura trágica, o desfecho é menos uma culminância e mais um retorno abrupto ao início: o amor foi, talvez, um equívoco.

Dostoiévski não constrói um romance no sentido clássico, mas uma coreografia breve entre dois solitários que se reconhecem mais pela falta do que pela presença. O que nasce entre eles não é exatamente amor, é o desejo de ser visto, compreendido, ouvido. E isso, às vezes, basta para acender uma chama que ilumina mesmo que por instantes. É esse tipo de vínculo fugaz, mas intenso, que nos faz lembrar que, por vezes, o que sentimos é mais verdadeiro do que aquilo que vivemos.

Quando a lucidez vira anestesia

Para a psicanálise freudiana, o sonho, inclusive o que temos acordados, é um mecanismo de defesa do ego contra as frustrações do princípio da realidade. O narrador de Dostoiévski é, nesse sentido, um sujeito que rechaça o real por meio da fantasia, não por covardia, mas por um movimento psíquico que busca preservar algum sentido – ainda que ilusório – num mundo que o repele.

O que se sente ao ler Noites Brancas não é apenas empatia pelo sofrimento dos personagens, mas uma estranha forma de anedonia: a incapacidade de encontrar prazer nas promessas doces da ilusão romântica. Segundo a psicologia clínica, a anedonia é um dos sintomas centrais da depressão, associada à incapacidade de experimentar prazer nas atividades antes apreciadas. Em Noites Brancas, ela se manifesta não como patologia, mas como uma epifania do desencaixe existencial. O protagonista sofre não de uma doença, mas de uma lucidez fatigante, como diria Emil Cioran, escritor e filósofo romeno: “Ser lúcido é ser devastado.”

O leitor experimenta, junto ao protagonista, uma ressaca emocional. Como se a vida, ao fim das quatro noites, sussurrasse: “Você está só e isso não vai mudar”. E essa constatação, longe de ser niilista, é de uma lucidez cruel e belíssima.

O vazio perigoso do excesso de finais felizes

Vivemos uma era em que otimismo virou commodity. A cultura pop atual insiste em vender a ideia de que tudo vai dar certo se você “acreditar de verdade” e encher os olhos de cores vibrantes e os ouvidos de piadas escapistas. Histórias que antes nos ofereciam um espelho passaram a nos oferecer fantasias terapêuticas. Em séries, filmes e livros com agenda panfletária travestida de profundidade, o sofrimento é só um degrau para a superação clichê. O real é polido até virar uma vitrine, com personagens que mais parecem coachs emocionais do que humanos reais.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han adverte em A Sociedade do Cansaço que vivemos uma era em que a positividade constante se transforma em uma violência silenciosa: “o excesso de positividade nos adoece”. As narrativas pop de superação forçada e alegria prescrita ignoram aquilo que Noites Brancas revela com simplicidade desconcertante: nem toda dor é pedagógica, nem toda espera traz alguém.

Dostoiévski, em contrapartida, não oferece redenção, oferece um retrato. E é exatamente isso que torna Noites Brancas tão atemporal: a honestidade brutal com que trata a solidão e o desejo.

Dostoiévski em plano sequência

Embora Noites Brancas não tenha recebido muitas adaptações diretas no cinema contemporâneo, seu espírito ecoa em algumas obras modernas que exploram encontros fugazes e diálogos existenciais. A mais conhecida é o clássico Antes do Amanhecer (1995), de Richard Linklater, onde dois estranhos compartilham uma noite de conversas intensas, atravessadas por uma espécie de melancolia doce. Ainda que a atmosfera seja menos trágica e mais esperançosa que a de Dostoiévski, há ali um parentesco emocional: a efemeridade do encontro e o desejo de conexão num mundo fragmentado.

Outra adaptação mais fiel, porém menos conhecida, é o filme italiano Noites Brancas (1957), de Luchino Visconti, baseado diretamente no conto de Dostoiévski. Com Marcello Mastroianni no papel principal, o filme traduz com delicadeza a atmosfera nebulosa da obra original, apostando num realismo poético que preserva a densidade emocional do texto.

Essas obras, mesmo que diferentes em forma e intenção, mostram como o conto resiste ao tempo e continua sendo fonte de inspiração, mesmo que silenciosa, em um cenário saturado por fórmulas. Enquanto as plataformas de streaming apostam em produtos rápidos e otimizados para engajamento, Noites Brancas permanece como um lembrete de que a arte mais valiosa é aquela que nos obriga a parar.

Por que ler Noites Brancas

Em tempos de consumo rápido e narrativas que se dobram a algoritmos, Noites Brancas se impõe como uma resistência literária. Ler Dostoiévski nesse conto é como mergulhar num espelho que não reflete imagens, mas estados de alma. É uma leitura que não pretende salvar, entreter ou curar, mas ferir de forma precisa: onde ainda há sensibilidade. Para quem sente que o mundo anda rápido demais e que a profundidade virou um artigo raro, este conto é uma pausa. Uma chance de entrar em contato com o que realmente nos atravessa: a solidão, o desejo e a beleza de uma dor bem contada. Além disso, tem a estética maravilhosa da escrita do autor, que, mesmo traduzida, é lindíssima.

Mais verdade em poucas páginas

A cada releitura de Noites Brancas, somos lembrados de que a complexidade das relações humanas não cabe em 10 episódios com plot twist. Que a dor não precisa de trilha sonora. Que a anedonia não é defeito, mas sintoma de uma percepção aguda da realidade. E que talvez seja justamente nos contos mais curtos que se escondam as verdades mais longas.

Aristóteles já dizia que a tragédia não está no evento em si, mas na transformação interna que ele provoca. Em Noites Brancas, não há clímax nem anticlímax, mas catarses sutis. A epifania do narrador é íntima e silenciosa, como uma lágrima que não escorre, apenas arde.

Você também sente que muitas histórias atuais estão sendo moldadas para agradar algoritmos em vez de corações? Qual obra recente realmente te perturbou, te desorganizou, te fez pensar por dias?

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