Uma resenha do segundo dia do Festival Prosa & Canto e da noite em que o Resgate tocou mais do que música
A maioria dos festivais musicais repete um script cada vez mais previsível: multidões ensaiadas, balbúrdia, selfies genéricas, e aquele eterno retorno do mesmo sob luzes coloridas. Mas em Anápolis-GO, no segundo dia do Festival Prosa & Canto, o clichê foi interrompido por algo raro: autenticidade. Havia frio, fogueira, pipoca e milho assado, sim, mas havia também um tipo de calor que não se produz com carvão. Era humano. Era espiritual. E tinha trilha sonora.
Onde a estrutura não engessa: ela acolhe
O Espaço Presbiteriano – IPA foi mais do que palco: foi abrigo. O local surpreendeu pela organização cuidadosa, com barracas bem distribuídas, banheiros dignos (amém!) e espaço farto para circulação, algo raro em eventos do tipo. Mas o detalhe mais notável não foi logístico: foi simbólico. Famílias inteiras estavam ali. Crianças no ombro dos pais, avós sorrindo, jovens sem olhar para o celular. Num tempo em que a família se tornou arena de debates histéricos, ali ela era só… família. Respirando junto, cantando junto.
E o clima? Frio, claro. Mas compensado por fogueiras estratégicas, fogareiros comunitários e aquele Q junino que faz o coração da gente dançar em compasso de xote. Era um festival gospel, mas não havia puritanismo enlatado. Havia festa. Havia identidade.
Resgate: o rock de quem carrega cicatrizes
E então o palco se iluminou, e quem subiu não foi apenas uma banda, mas um manifesto. O Resgate, ativo desde 1989, mostrou por que é um dos nomes mais relevantes da música cristã brasileira. Diferente da caricatura que muitos fazem da música gospel, o Resgate canta com os calos e com os cérebros. Zé Bruno, ainda mais potente do que nos primórdios, conduziu a noite com a firmeza de quem já enfrentou o deserto e ainda carrega poeira nas botas.
As canções novas do álbum Onde Guardamos as Flores?, como “Um Nariz Vermelho” e “Nas Chagas”, vieram como pedradas suaves na alma. Em “Um Nariz Vermelho”, por exemplo, os versos confrontam a idolatria travestida de devoção:
“E nós usamos um nariz vermelho / Fomos nós que escolhemos / Fomos nós que os ungimos / E beatificamos, nos curvamos, submergimos”
Já em “Nas Chagas”, a banda abandona os clichês religiosos para mergulhar num lirismo cru, quase jornalístico, com imagens de abandono social, violência urbana e uma esperança que resiste:
“Cansadas / Mães de maio que choram nas nossas praças / São a noiva que espera seus filhos / Que o filho traduz / Nas chagas / Toda dor e o sangue das nossas casas / Que enfim descansaram nos punhos pregados na cruz”
A poesia densa e militante não é panfletária, mas profética. Evoca Isaías e ao mesmo tempo as ruas. É a fé de olhos abertos.
Precisão técnica com alma
Tecnicamente, a banda está mais afiada do que nunca. Muita virtuosidade. As guitarras de Zé Bruno e Hamilton Gomes soavam limpas e ao mesmo tempo cruas, sem perder a identidade roqueira que sempre marcou o grupo. Solos formidáveis, mas repletos de uma simplicidade lúdica. Jorge Bruno, na bateria, manteve uma pegada firme, quase tribal em alguns momentos, criando uma base pulsante e cheia de intenção. A mixagem estava equilibrada, com timbres bem resolvidos que não engoliam a inteligibilidade das letras. Aliás, não há como não destacar as linhas de baixo precisas e cheias de groove de Marcelo Bassa, que, junto à bateria, forma uma cozinha robusta e funcional.
Esse cuidado técnico não tira a espontaneidade, pelo contrário: é o que permite que a energia flua sem tropeços. O Resgate sabe onde pisa. E pisa firme.
E o passado bateu na porta
Mas foi ao revisitarem clássicos como “5:50”, “Todo Som” e “Rock da Vovó” que o público veio abaixo. Cada canção era um fragmento de história pessoal. Um lembrete de tempos mais simples, de uma espiritualidade menos institucionalizada e mais visceral. Muitos ali choraram. Outros cantaram com os punhos cerrados e os olhos fechados. Foi nostalgia, mas também foi catarse.
Não à toa, a experiência toda ganhou ares de metanoia, não no sentido clichê de “virada espiritual”, mas na essência da palavra grega: mudança de mente. Mudança de rota. Kierkegaard talvez dissesse que ali muitos viveram um instante de desespero consciente, aquele que antecede a liberdade real.
Nietzsche certa vez provocou: “E aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam ouvir a música”. Aquela noite foi uma prova viva dessa afirmação. Quem esteve lá, dançou com as ideias. E saiu transformado.
Outros sons, outras vozes, o mesmo espírito
E como se já não bastasse o soco de lucidez do Resgate, o palco ainda abrigou performances robustas. Vavá Rodrigues não é apenas um cantor, é um testemunho com amplificador. Sua música, que mistura o rock com uma pegada nordestina autêutica, foi um chamado à resistência. Um lembrete de que o Evangelho também passa pelo sotaque.
E o grupo Sal da Terra trouxe sua musicalidade regional com sofisticação e verdade. Nada de folclore domesticado. O que se viu foi um povo cantando sua dor e sua esperança com a dignidade de quem carrega a graça nos ombros e a terra nos pés.

Fé que não precisa se disfarçar de glamour
A noite foi, em resumo, um lembrete incômodo e belo de que o sagrado não precisa de verniz. Que a espiritualidade pode, sim, subir no palco de jeans, com guitarras distorcidas e poesia nas letras. Que Deus, talvez, não frequente os templos de ouro, mas se assente entre fogueiras juninas e acordes em Mi menor.
Romanos 12:2 diz: “E não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente”. Difícil imaginar um versículo mais adequado àquela noite. Porque quem esteve ali não saiu igual. Saiu diferente. Saiu pensando. Saiu cantando.
E você, ainda canta o que crê ou apenas repete o que te ensinaram? Que tipo de som tem ecoado dentro de você ultimamente?