“O mundo não é lindo. Portanto, ele é.”
Esta não é uma contradição, é uma sentença. Um epitáfio da esperança, um aforismo para adultos que já não acreditam que só se vê bem com o coração. Kino no Tabi: The Beautiful World não é um anime para quem espera catarse, vilões derrotados ou finais redentores. É para quem entende que o mundo é, antes de tudo, um lugar estranho e que, talvez por isso mesmo, mereça ser olhado com atenção. Um mundo em que a beleza não está na superfície das coisas, mas nas rachaduras das certezas.
Um Pequeno Príncipe às avessas
Enquanto Saint-Exupéry conduz seu menino de cabelos dourados por planetas que são metáforas poéticas do humano, Kino no Tabi leva sua protagonista andrógina por países que são metáforas cruéis do mesmo humano. Onde o Pequeno Príncipe vê fantasia, Kino vê estrutura. Onde um fala com uma rosa, o outro observa ditaduras. Onde um se emociona, o outro registra.
Ambos viajam. Ambos encontram. Ambos deixam. Mas um quer entender a beleza do que é invisível; o outro aprende a conviver com o que é visível demais.
Kino no Tabi é, talvez, o que o Pequeno Príncipe teria se tornado caso tivesse crescido e sobrevivido à queda. Um Príncipe que descobriu que os adultos realmente são esquisitos, e decidiu continuar andando, porque parar seria aceitar.
Enredo entre o mapa e o mistério
Kino é uma jovem viajante que percorre, com sua moto falante Hermes, uma série de países distintos, cada um com suas leis, costumes, disfunções e dilemas éticos. O pacto é simples: ela fica três dias em cada lugar, tempo suficiente para conhecer, mas não para se enraizar. “Três dias” aqui não são apenas uma regra: são uma filosofia de distância. Suficientes para olhar, insuficientes para interferir.
Cada episódio é uma distopia condensada, um campo de experiências humanas, um espelho invertido de nossos sistemas. As tramas são contos morais, às vezes sombrios, muitas vezes brutais, que confrontam diretamente nossa tendência ao maniqueísmo.
Quem Criou Esse Mundo?
A série é baseada na light novel de Keiichi Sigsawa, nome menos lembrado que merecido. Lançado em 2000, o livro original gerou mais de vinte volumes. O universo de Kino se expandiu em diversas mídias: uma série em 2003 (dirigida por Ryutaro Nakamura, o mesmo de Serial Experiments Lain), um remake em 2017 com animação polida, além de mangás e jogos.
Sigsawa escreve como quem tem consciência de que o entretenimento pode, sim, provocar rupturas. Suas histórias funcionam como mitologias contemporâneas, onde os deuses foram substituídos por instituições e o heroísmo foi corroído pela observação silenciosa. Se Ryunosuke Akutagawa (considerado o pai do conto japonês) tivesse nascido no século XXI, talvez escrevesse algo assim.
Filosofia em marcha lenta
Kino no Tabi é essencialmente filosófico. Uma crítica em movimento. Uma câmera lúcida que nos obriga a encarar dilemas que normalmente evitamos. Há ecos de Foucault nos sistemas de vigilância que Kino visita. Algo de Hannah Arendt nas sociedades que normalizam o mal. E uma pitada de Camus no silêncio com que ela segue. Também há Jung: Hermes é anima, alter ego, sombra dialogante. Uma forma mecânica de preservar a sanidade e manter o princípio de realidade em meio às ruínas do superego coletivo.
Talvez seja nesse ponto que a obra mais nos agrida: ela não quer que você escolha um lado. Quer que você reconheça que, por vezes, todos os lados estão errados. É uma obra que desconfia da bondade espontânea e que entende que o inferno é pavimentado não com boas intencões, mas com regras bem formuladas.
Técnica e atmosfera, a beleza do silêncio
A primeira versão (a que eu mais gosto), de 2003, é um poema visual de tom sépia. Sua paleta desbotada evoca aquela hora ambígua do dia em que tudo parece hesitar: o lusco-fusco. A luz não sabe se vai ou se volta, e o mundo inteiro parece suspenso entre o que é e o que poderia ter sido. É o horário preferido da consciência.
O remake de 2017 entrega fluidez estética, mas mantém a mesma quietude simbólica. Nada é espalhafatoso. Tudo respira em silêncio. Os silêncios dizem mais que os diálogos. As pausas importam tanto quanto o enredo. É uma série que exige da audiência não apenas atenção, mas entrega.
Por que assistir Kino no Tabi?
Porque talvez você esteja cansado de narrativas mastigadas, finais felizes e personagens que existem apenas para serem amados. Porque há algo de necessário em se confrontar com a ausência de respostas, com a dissonância entre moralidade e legalidade, com a ambiguidade ética de uma protagonista que raramente toma partido, mas sempre observa.
Kino no Tabi é para quem não tem medo do vazio. Para quem entende que contemplar também é ação. Que calar é, às vezes, mais político que gritar. Assistir a este anime é como aceitar um convite para sentar na beira do mundo e vê-lo passar, em silêncio, tentando entender suas engrenagens, mesmo sabendo que elas estão enferrujadas.
Ele não quer que você se divirta. Quer que você desperte e, se puder, que você duvide.
O mundo não é bonito. Mas é.
Kino no Tabi não quer ser amado. Está mais próximo de um tratado ético do que de um arco narrativo tradicional. Sua beleza está no que ele se recusa a fazer: julgar, explicar, redimir.
O que ele oferece é desconforto, um desconforto elegante, sabe? Reconhecer-se nos países que Kino visita é, por vezes, um soco no estômago, mas daqueles que a gente agradece por nos acordar. O anime atua como um espelho invertido: nele, a distópica beleza do mundo surge apenas quando se aceita sua feiura. Como quem caminha por uma cidade em ruínas e encontra, no meio do concreto rachado, uma flor que insiste em nascer.
E se a beleza do mundo estiver justamente na sua capacidade de nos ferir e, mesmo assim, nos fazer continuar olhando? Ou pior: continuar andando?