Hoje é o Último Dia do Resto da Sua Vida: punk, sobrevivência e a não-catarse

Ler a graphic novel de Ulli Lust é ser tragado por uma crônica de brutalidades e afetos dilacerados, um romance de formação onde a formação nunca se completa. Não há amadurecimento no sentido tradicional, tampouco aquele “crescimento” que a literatura gosta tanto de aplaudir. O que há é a exposição nua de uma juventude que se recusa a obedecer a qualquer roteiro civilizatório: uma não-catarse ou uma anticatarse.

E como poderia? Quando a protagonista e autora, que decide atravessar a Europa à deriva, não está em busca de autoconhecimento ou transcendência, como os beatnicks de Kerouac. Não há aqui o mito da estrada como metáfora redentora. Há apenas a estrada como realidade, e ela é poeira, suor, fome, estupro e, paradoxalmente, liberdade.

O traço expressivo de Ulli Lust reforça isso: não quer ser bonito, quer ser verdadeiro. E é. Feio, rude, honesto… tal como a vida, sabe?

Juventude sem aprisco: exílio voluntário ou fuga desesperada?

É tentador (sempre é) interpretar trajetórias como a de Ulli através da ótica da fuga. Afinal, sair de casa aos dezessete anos, cruzar fronteiras sem dinheiro, comer restos, dormir ao relento, submeter-se a perigos, tudo isso parece gritar: “ela fugiu”. Mas será? Ou terá recusado o aprisco? O abrigo seguro, acolchoado, onde as instituições moldam corpos e mentes para que obedeçam, calem, se acomodem?

Recusar o aprisco, portanto, não é um ato passivo, nem simplesmente reativo. É uma afirmação radical: prefiro o desabrigo ao conforto condicionado. Prefiro o risco à segurança entorpecente. Prefiro a possibilidade de não voltar viva à certeza de nunca ter vivido de fato.

E aí reside a potência política desta obra: não na denúncia direta ou panfletária, mas na simples e corajosa recusa.

O corpo como estrada e como ruína

Poucos livros, e menos ainda graphic novels, ousaram ir tão longe na exposição do corpo como espaço narrativo total. Não é só sobre sexo, embora ele esteja ali, despudorado e, por vezes, brutal. É sobre como o corpo se converte no único meio de troca, no único abrigo possível, no único documento válido.

Ulli Lust desenha a si mesma como quem se escreve com uma navalha: cada linha é uma cicatriz. Seu corpo é passaporte e prisão, território e ruína. Na ausência de dinheiro, de casa, de proteção, o corpo é o que resta e o que sobra. Ele circula, se oferece, se impõe e se esgota.

Mas, ao contrário do que o moralismo poderia sugerir, não há aqui espaço para o vitimismo fácil. A narrativa é frontal, sem ornamentos, recusando qualquer sentimentalismo. É relato e não lamento.

Arte que não quer ser consolo: o livro como desafio

É comum que livros sobre juventudes “perdidas” tentem, ao final, oferecer alguma forma de consolo: uma lição aprendida, um caminho encontrado, uma redenção: um momento catártico. Ulli Lust não entrega nada disso. Ao fim, resta o incômodo. E ele é, talvez, o mais necessário dos sentimentos.

A arte aqui não é um curral do tipo aprisco, nem um antídoto para as angústias do mundo. Ela é convite (ou uma ameaça?) para que se viva sem garantias. E isso é mais do que uma escolha estética, é um posicionamento existencial.

O título já avisa: “hoje é o último dia do resto da sua vida”. Não amanhã, não depois, não quando você finalmente encontrar estabilidade emocional, financeira ou espiritual. É hoje. E ponto.

O que resta, então?

O incômodo. O desconforto. A lembrança de que muitos de nós aceitamos o aprisco e seguimos a vida sem sequer perguntar se poderíamos ter escolhido o desabrigo.

Fechar esse livro não é um alívio, é um chamado. Ou talvez, para alguns, um alerta.

Porque sim, talvez o maior risco de todos seja perceber que a segurança é uma ficção confortável, mas, no fim, tão ilusória quanto qualquer mapa que pretenda conter a vastidão imprevisível da existência humana.

Recomendo essa leitura indigesta e provoco: será que você vai seguir no seu lugar seguro ou se lançar ao mundo sem garantias, tal como Ulli Lust fez, com sua mochila vazia e o olhar carregado de fome?

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